excepcionalmente, publicamos hoje o texto plangente e contudente de gilles lapouge, sobre o animal que inspirou e batizou no nosso "jipinho": o jegue, o asno, o burro, o jumento.
as semelhanças, nas dores e alegrias, admiração e desprezo, utilidade e descartabilidade, não param por aqui. é domingo, e talvez você não queira estragar a sua feijoada(que pode ter carne de jegue dentro), sua pizza ou churrasco com este texto. mas quem o ler, certamente, se tornará melhor. não tanto como os jegues. mas pelo menos terá dado um passo a frente.
Está na hora de lembrar dos jumentos. Os jornais falam
muito do Festival de Cannes, do aquecimento global, do naufrágio da
Grécia, mas aos jumentos quase ninguém se refere. O cavalo é mais
favorecido. É sempre o foco da atenção pois tem elegância, brilho.
Domingo vai às corridas, onde caminha gingando como uma estrela de
cinema. Os homens usam belas calças e as mulheres lindos chapéus para
montar nele.
O jumento não tem a mesma presença. É chamado de "burro" e de "asno".
Palavras ofensivas. Tem cor de estopa. É desnutrido. Por que esse
rosário de afrontas? Se eu fosse jumento, faria um motim. Brigitte
Bardot falou recentemente dos jumentos, os do Brasil. Ela ficou furiosa
ao saber que o Rio Grande do Norte, visando a criar uma nova fonte de
renda, teria aceitado exportar 300 mil jumentos por ano para a China
para nutrir as indústrias alimentícias e cosméticas desse país. Eu
compartilho da cólera de Brigitte.
A rarefação dos jumentos nos campos - no Nordeste brasileiro, no sul
da França, mesmo na Palestina - sempre me pareceu uma desgraça. Fizemos
tanta coisa juntos, eles e nós - as pirâmides, as minas, as rodas
d'água, as catedrais, a agricultura...
O jumento também transformou uma desvantagem em mérito. Ele sofre de
um problema de vértebras: tem uma a menos. Mas, como é dono de um
espírito dócil, aceitou esse infortúnio, que lhe dá pavor de correr e
lhe tira o fôlego quando o dono o faz trotar. Na verdade, ele transforma
essa fraqueza em força. Como suas vértebras dorsais são bastante
desenvolvidas, seu dorso é saliente e seus rins são fortes. Essa
constituição singular se ajusta à sela, de madeira ou de couro.
Todas essa inferioridade e a maneira com que ele teve de assumi-la
compuseram o destino do jumento. Ele não é bom para correr e não sabe
galopar. Em compensação é ótimo para puxar charrete, mover as rodas que
trazem a água para a superfície no deserto, carregar feixes de trigo e
sacos de terra e pedra. É bom também para descer ao fundo das minas de
carvão, onde, muitas vezes, de tanto viver no escuro, acaba ficando
cego.
O jumento participou de todas as aventuras do homem. Suou por nós.
Perdeu seu fôlego por nós. Morreu sob nossos golpes. E, quando os
engenheiros inventaram o motor de explosão, a moto, o trator e o
caminhão, adeus jumento! Adeus, velho servidor! Vamos vendê-lo para a
China para que as pessoas o comam. Nós o jogamos como se joga uma roupa
esgarçada, uma gilete sem corte. Adeus, velho amigo, mas você não serve
para mais nada!
Gosto muito dos jumentos do Nordeste brasileiro. Venho testemunhando
sua derrota há 40 anos. E vi esta aberração: motos ruidosas,
nauseabundas, perigosas, substituindo jumentos para cercar os rebanhos,
em meio a um atroz odor de combustível. Em 1974 fiz uma longa viagem
pelo Nordeste do Brasil. Sozinho. Fui de cidade em cidade, ao acaso,
segundo meu desejo, em ônibus que rodavam 10, 12 horas por dia. Os
jumentos já começavam a desaparecer, mas ainda eram numerosos. Faziam
parte da paisagem nordestina. Quando chegava aos vilarejos assolados
pela seca, eu ia cumprimentá-los. Eles me lembravam aqueles jumentos que
conheci e amei na minha infância, não no Brasil, mas na França, nas
montanhas austeras e pedregosas da Provença. Eu falava com os jumentos
de João Pessoa ou de Epitácio Pessoa. Temos boas lembranças em comum, os
jumentos do Nordeste e eu. Hoje, quando atravesso esses lugares ermos,
em meio à barulheira dos caminhões e das motos, procuro por todo o lado
as orelhas, as belas orelhas sensíveis, e elas sumiram.
Eu respirava seu odor. Olhava seus grandes olhos melancólicos e era
como se um tapete mágico me conduzisse de volta aos tempos felizes da
infância. Foi nessas longas noites no Nordeste que compreendi por que
tanto amava os jumentos. Do outro lado do mundo, encontrei os mesmos
animais, tão bonitos, tão fortes, tão resignados. Como seus congêneres
da Provença, os pequenos jumentos do Nordeste se aproximavam de mim e
cheiravam minhas mãos. Eles gostavam do meu cheiro, e eu do deles.
Certas noites, nesse longo périplo solitário entre Salvador e Natal,
Recife e Terezinha, sentia uma certa angústia pelo fato de estar só.
Então ia ver os jumentos. Tínhamos este ponto em comum: detesto a
solidão, os jumentos, também. Se um jumento está sem companhia, fica
infeliz. Entedia-se a ponto de parecer que pode morrer de tédio.
O jumento não é só corajoso e útil: também tem caráter. Apesar de sua
cortesia e indulgência com relação às loucuras e vilanias dos homens,
jamais transige em questão de princípios. Na Bíblia, uma jumenta impediu
que seu senhor, o adivinho Balaam, bloqueasse a passagem do povo de
Israel quando este se aproximava da Terra Prometida. Naquele dia, os
homens estiveram muito perto do desastre. Se a jumenta não tivesse dado
uns bons coices em Balaam, os judeus jamais teriam continuado sua
epopeia e isso teria provocado uma grande confusão na Bíblia, na
história religiosa e em toda a História. Teríamos que começar tudo do
zero. E Deus, como iria se sair dessa?
Em recompensa, o jumento teve o privilégio de aquecer com seu sopro o
Menino Jesus na manjedoura. O jumento também teve a honra de servir de
montaria para Cristo quando Ele entrou em Jerusalém, antes da Paixão.
Jesus ficou muito emocionado e marcou o dorso do jumento com um sinal da
cruz. Na Provença nós chamamos de "cruz de Santo André". Fiquei
comovido ao encontrar nos jegues do Nordeste o mesmo sinal da cruz.
O jumento é bem considerado pelos deuses. Enquanto os homens o
condenam ao insulto, ao desprezo, à pancada e ao trabalho perpétuo, as
sociedades religiosas têm consideração com ele. A história santa está
repleta de jumentos. A Bíblia o cita 133 vezes, um recorde entre os
animais. Em Josué, ficamos sabendo que o jumento foi montado por judeus
da mais alta sociedade, príncipes e damas. Cada patriarca tinha seu
jumento. Abigail, que vai ao encontro de David, sela seu jumento
(Samuel, 25) Zorobabel, depois da Babilônia retorna a Jerusalém montado
no dele. Sansão, quando 3 mil filisteus o atacam, usa uma queixada de
jumento para revidar e os mata.
O jumento vai do Velho Testamento para o Novo. Jesus escolheu um
burrico, não um cavalo, para entrar em Jerusalém. Em Roma, os pagãos
ridicularizavam a religião cristã por causa de sua amizade com os
jumentos. Um pouco mais tarde, encontramos muitos místicos cristãos no
Egito que se entregavam a penitências terríveis: viver sentados na ponta
de uma coluna de pedra, numa árvore, quase imersos num pântano ou então
se mantendo de tal modo imóveis que os pássaros faziam ninho em suas
mãos. Os pagãos se divertem com esses fanáticos. E os chamam de
"jumentos".
É verdade que mesmo em países cristãos os jumentos foram às vezes
maltratados. Na Espanha, quando Isabel, a Católica, mandava queimar uma
feiticeira, esta era amarrada nua num burro para que, à pena de morte,
se adicionasse o suplício de partir da vida no dorso de um animal
desprezado e obsceno. Na França os professores durante muito tempo
colocavam um chapéu de asno na cabeça dos maus alunos. Por toda parte o
jumento foi relegado ao desprezo e à injúria. Ao longo da história
(salvo nos países do Oriente Médio), ele esteve no mais baixo nível da
sociedade. Pior: foi sempre o bode expiatório dos mais humildes, o
doméstico dos domésticos, o escravo dos escravos, o proletário dos
proletários.
Alguns intelectuais foram em seu socorro. Victor Hugo escreveu, no
fim da vida, um imenso poema glorificando o jumento. O grande
historiador Michelet sublinhou o papel do burro na história dos homens, e
o grande naturalista Buffon defendeu o jumento contra o cavalo. O
filósofo da Renascença Giordano Bruno, último homem queimado pela
Inquisição, em 1600, fez do jumento um modelo de espírito e erudição. Os
sábios que acompanharam Napoleão Bonaparte no Egito, em 1798, montavam
jumentos. Quando a tropa foi atacada pelos mamelucos, os oficiais
franceses gritaram: "Protejam os jumentos no centro". No geral, pintores
e poetas amam o jumento. Os cabalistas judeus descobriram que a palavra
"jumento", em hebraico, tem as mesmas letras que a palavra "matéria". E
concluíram que o jumento é "o mestre dos segredos do universo". Têm
razão. O jumento entende tudo: se é idiota, é idiota como O Idiota de
Dostoievski, o príncipe Muichkine - que é genial porque, se não
compreende as coisas corriqueiras, compreende, por outro lado, as mais
obscuras.
O jumento sabe tudo. Ele não trota nas mesmas paisagens que nós.
Apenas aparenta compartilhar nossos caminhos, quando na realidade está
em outro lugar, vem de outro lugar, vai para outro lugar. Ele atravessa
educadamente nossa geografia sem fazer ruído para não nos perturbar, mas
na verdade não caminha no mesmo passo que nós. Somente os poetas
compreenderam a nobreza do jumento. Na França, no início do século 20,
Francis Jammes escreveu uma oração para eles. É tão bela e luminosa que
eu vou citá-la:
Prece para chegar ao Paraíso em Companhia dos Jumentos
Quando for a hora de ir a vosso encontro, meu Deus, fazei com que
seja num dia em que o campo esteja brilhando em festa. Pegarei meu
bastão e pela grande estrada irei, e direi aos jumentos, meus amigos:
sou Francis Jammes e vou para o paraíso, porque não existe inferno na
terra do Bom Deus. Eu lhes direi: venham pobres animais queridos, que
com um brusco movimento de orelhas se livram das moscas, dos golpes e
das abelhas. Que eu apareça diante de Vós entre esses animais que amo
tanto porque baixam a cabeça docemente e juntam as pequenas patas de uma
maneira tão gentil que dá pena. Meu Deus, fazei com que eu chegue até
Vós com esses jumentos. Fazei com que os anjos nos conduzam em paz pelos
riachos ensombreados em cujas margens tremulam cerejeiras, e fazei com
que nessa morada das almas, sob vossos divinos olhos, eu me assemelhe
aos jumentos, cuja humildade e doce pobreza se refletirão na limpidez do
amor eterno.
Certamente, com o passar do tempo e dos milênios (ele está entre nós
há 5 mil anos) o jumento começa a entender que as coisas não vão muito
bem para ele, mas não se revolta. Sua tática é sutil. O cérebro humano
não a alcança. O jumento é submisso e glorioso ao mesmo tempo, resignado
e irredutível, escravo e soberano, vencido e vencedor. Ele dá
cambalhotas nas primaveras onde não já não estamos. Encontrou obstáculos
e os contornou. Ele se salvou do tempo. Sobre seus belos cascos, trota
nas pradarias onde as horas não soam.
Se o espancamos, ele nos olha com um olhar incrédulo e belo. Não fica
com raiva. Tem pena de nós. Não nos culpa, só nos observa. Ele gostaria
de nos ajudar a ser menos vingativos. E nos consola de nossas maldades.
"Não se preocupe", parece dizer, arreganhando os beiços, "não é sua
culpa. Você é assim, mas isso vai passar. É um mau momento, uma má
eternidade. Depois, você vai ver, tudo será melhor."
Durante a 1ª Guerra Mundial, em Verdun, inúmeros soldados foram
mortos e enterrados. Inúmeros jumentos também foram mortos, mas não
foram enterrados. Há alguns anos, um pintor de Auvergne (região
montanhosa no centro da França onde há muitos jumentos), Raymond Boissy,
manifestou sua indignação. E propôs que um monumento fosse erigido aos
mortos, um monumento ao Jumento Desconhecido (como há em Paris o Túmulo
do Soldado Desconhecido).
É uma ótima ideia. Aqueles jumentos, o Exército francês os fez vir de
barcos do Magreb, do Marrocos, porque os jumentos dessa região são
pequenos, dóceis e muito fortes. Eram capazes de transportar 150 quilos
de obuses. Rastejavam nas trincheiras levando munição para os soldados
que se encontravam em casamatas e fortins. Claro, os alemães descobriram
e seus artilheiros bombardearam os ventres dos pequenos jumentos
marroquinos. Foi uma carnificina. Aqueles que sobreviveram e retornaram
às linhas francesas, contentes de reencontrar seus senhores, estavam
feridos. Então foram abatidos. 150 mil jumentos foram mortos em Verdun.
O solo de Verdun está repleto de valas comuns de jumentos. Ali eram
jogados os cadáveres desses animais tão gentis, suas pequenas coxas
quebradas, as pequenas patas rígidas, seus olhos, tão belos, tão
indulgentes, tão resignados. Como não chorar?
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